Colmeia 5.4

Um coisa que sempre me incomodou muito é quando me pedem para chegar num determinado horário, e depois me fazem ficar esperando. Quinze minutos era o limíte da minha paciência.

Eu e meu pai já estávamos esperando há mais de meia hora.

“Isso só pode ser de propósito,” reclamei. Tinham nos pedido para esperar no escritório da diretora assim que chegamos, mas a diretora não estava lá.

“Hmm. Tentando mostrar que estão acima de nós, nos fazendo perder tempo,” meu pai concordou, “Talvez. Ou estamos aguardando a outra menina chegar.”

Eu estava sentada num ângulo em que se eu me inclinasse um pouquinho, poderia enxergar o pedacinho da janela do escritório que não era coberto pelas cortinas. Não muito depois de chegarmos, Emma e seu pai apareceram, totalmente casuais e sem estresse, como se fosse um dia normal. Ela nem estava preocupada. Ela e seu pai eram nada parecidos, além do cabelo ruivo – ele era grande em todos os sentidos da palavra. Mais alto que a média, barriga saliente, e quando precisava usá-la, ele tinha uma voz poderosa que chamava a atenção das pessoas. A Emma só tinha os peitos grandes mesmo.

O pai de Emma estava falando com os pais de Madison. Só a mãe da Madison era pequena como a filha, mas ambos pareciam bem jovens. Diferente de Emma e seu pai, Madison e seus pais pareciam preocupados, e eu inferi que o pai de Emma estivesse tentando acalmá-los. Já a própria Madison estava olhando para o chão, quieta, somente respondendo o que Emma dizia.

Sophia foi a última a chegar. Ela parecia carrancuda, brava, uma expressão que me lembrava a Bitch. A mulher que a acompanhava definitivamente não era sua mãe. Era loira de olhos azuis, com um rosto delicado e usava uma camisa azul-escura e calças sociais bege.

A secretária nos chamou do escritório não muito depois.

“Cabeça erguida, Taylor,” meu pai murmurou enquanto eu colocava a mochila nas costas, “Mostre segurança, porque isso não vai ser fácil. Mesmo nós estando certos, o Alan é advogado, e é um mestre em manipular o sistema.”

Assenti. Eu já estava pensando nele dessa forma. Depois de atender a ligação do meu pai, fora Alan quem havia sugerido esta reunião.

Fomos levados pelo corredor até o escritório da orientadora, uma sala com uma grande mesa oval. O Trio e seus representantes legais se assentaram em uma ponta da mesa, sete ao todo, e pediram que nos sentássemos na outra ponta. A diretora e meus professores chegaram pouco tempo depois, sentando-se entre os dois pólos. Talvez eu ainda estivesse muito impressionada pela reunião de supervilões dois dias atrás, mas percebi que o Sr. Gladly havia se sentado ao lado do pai da Madison, enquanto a cadeira ao lado do meu pai permaneceu vazia. Estaríamos completamente isolados do grupo do lado oposto da mesa se a Sra. Knott, minha professora do primeiro horário (N.T.: ‘homeroom’ é como os norte-americanos chamam a primeira aula do dia, dura uma meia hora e é mais para avisos e se preparar para o dia de aula), não houvesse se sentado à minha esquerda. Será que ela estaria sentada ali, se houvessem mais assentos disponíveis?

Eu estava nervosa. Já tinha contado ao meu pai que estava perdendo aulas. Não disse quantas, mas não queria cometer o mesmo erro da Bitch de não o deixar ciente da situação de antemão. Eu previa que comentassem isso na reunão. Estava preocupada de as coisas não irem como eu gostaria. Pensando se eu iria, de algum jeito, estragar tudo.

“Obrigada a todos por virem,” disse a diretora, ao sentar-se e puxar uma pasta fina para a frente. Ela era uma mulher magra, com cabelos loiro-escuros num corte curto que eu nunca tinha achado atraente. Ela se vestia como se estivesse num funeral – blusa, suéter, saia e sapatos pretos, “Estamos aqui para discutir alguns incidentes em que uma de nossas alunas foi vitimizada.” Ela olhou para a pasta que havia trazido, “Srta. Hebert?”

“Sou eu.”

“E os indivíduos acusados de mau comportamento são… Emma Barnes, Madison Clements e Sophia Hess. Você já esteve no meu escritório, Sophia. Eu gostaria que tivesse a ver com o time de corrida, ao invés de detenção.”

Sophia resmungou uma resposta que parecia concordar.

“Agora, se entendi corretamente, Emma foi atacada fora da escola pela Srta. Hebert? E logo depois, foi acusada de bullying?”

“Sim,” Alan disse, “Seu pai me ligou, me confrontando, e achei melhor trazer isto ao lugar apropriado.”

“Uma boa ideia,” a diretora concordou, “Vamos resolver este assunto.”

Então ela se virou para meu pai e eu, com as mãos para cima.

“Que foi?” perguntei.

“Por favor. Quais acusações gostaria de fazer contra estas três?”

Ri um pouco, desacreditada, “Legal. Então vocês chamam a gente assim de repente, sem preparo, e querem que eu esteja pronta para depor?”

“Talvez para descrever alguns dos incidentes maiores?”

“E que tal os menores?” a desafiei, “Todas as pequenas coisas que faziam do meu dia-a-dia um inferno?”

“Se não consegue se lembrar-”

“Eu me lembro,” a cortei. Me abaixei para pegar uma pilha de papéis da mochila que havia colocado no chão. Tive que arrumá-la um pouco para dividi-la em duas pilhas. “Seis emails ofensivos, Sophia me empurrou da escada quando eu estava terminando de descer, me fazendo derrubar os livros, me empurrou e derrubou três vezes durante a aula de educação física, e jogou minhas roupas em mim enquanto eu estava no chuveiro quando a aula acabou, deixando-as molhadas. Eu tive que usar a roupa de educação física o resto do dia. Na aula de biologia, Madison usou todas as desculpas possíveis para ir apontar os lápis ou falar com a professora, e cada vez que passava pela minha carteira, ela derrubava todas as minhas coisas no chão. Eu estava preparada para a quarta vez, e abracei a carteira para impedi-la, então ela simplesmente pegou o lixo do apontador e jogou tudo na minha cabeça enquanto passava. Todas as três me encurralaram depois da escola e tomaram minha mochila de mim, jogando-a no lixo.”

“Entendo,” disse a diretora com uma expressão empática, “Não é muito bacana, né?”

“Isso foi dia oito de setembro,” apontei, “Meu primeiro dia de volta às aulas, semestre passado. No dia nove-”

“Com licença, perdão. Quantos registros você tem?”

“Um para cada dia de aula começando pelo semestre passado. Desculpe, só comecei a anotar desde então. Dia nove, outras meninas da minha sala foram encorajadas por essas três a me insultar. Eu estava usando a mochila que elas tinham jogado no lixo, então todas as meninas que sabiam ficavam tampando o nariz ou dizendo que eu tinha cheiro de lixo. Isso pegou, e pelo fim do dia, várias pessoas estavam fazendo a mesma piada. Tive que mudar o meu email após minha caixa de entrada encher totalmente com emails daquele mesmo estilo. Tenho todos os emails aqui, aliás.” Pus a mão na segunda pilha de papéis.

“Se me permite?” a Sra. Knott pediu. Dei a ela a pilha de emails.

“Se sufoque num caco de vidro. Ver você me deprime. Morra num incêndio,” ela recitou ao ler as páginas.

“Vamos voltar ao assunto,” meu pai disse, “Veremos tudo eventualmente. Minha filha estava falando.”

“Eu não tinha terminado o dia nove,” falei, “Hã, deixa eu ver. Educação física, de novo-”

“Você vai falar sobre cada um dos incidentes?” a diretora perguntou.

“Achei que quisessem ouvir. Não podem fazer um julgamento justo até ouvirem tudo o que aconteceu.”

“Temo que o volume seja bem razoável, e alguns de nós têm trabalho a fazer ainda esta tarde. Se você puder resumir e contar apenas os incidentes mais importantes?”

“São todos importantes,” eu disse. Talvez eu tenha erguido a voz, porque meu pai pôs a mão em meu ombro. Respirei fundo, e disse o mais calmamente possível, “Se te incomoda ter que ouvir sobre eles, imagine como foi ter que passar por tudo isso. Talvez você tenha só um mínimo de noção de como é frequentar a mesma escola que elas.”

Olhei para as meninas. Apenas a Madison parecia chateada. Sophia estava me encarando, e Emma parecia entediada, sem preocupação. Não gostei disso.

Alan disse, “Acho que todos entendemos que tem sido desagradável. Você já mostrou bastante, e agradeço o seu insight. Mas quantos destes incidentes podem ser provados? Esses emails foram enviados dos computadores da escola?”

“Muito poucos foram enviados daqui, a maioria são contas descartáveis do hotmail e da yahoo,” respondeu a Sra. Knott, enquanto folheava as páginas, “E quanto àqueles que usam o email da escola, não podemos descartar a chance de alguém ter esquecido sua conta logada quando saiu do laboratório de informática.” Ela me lançou um olhar de desculpas.

“Então os emails não contam,” Alan falou.

“Não é você que decide isso,” meu pai retrucou.

“Um monte dos emails foram mandados durante o horário escolar,” afirmei. Meu coração quase saía pela boca. “Eu até os assinalei em azul.”

“Não,” a diretora disse, “Concordo com o Sr. Barnes. É melhor que demos atenção às coisas que podemos verificar. Não podemos saber quem mandou esses emails ou de onde.”

Todo o meu trabalho, todas as horas que gastei anotando os eventos quando a última coisa que eu queria era lembrar daqueles dias, jogados fora. Cerrei os punhos no meu colo.

“Tudo bem?” meu pai murmurou para mim.

Tinha muito pouca coisa que eu podia realmente provar.

“Duas semanas atrás, o Sr. Gladly me chamou para conversar,” falei para os presentes, “Ele percebeu que algumas coisas haviam acontecido em sua aula. Minha carteira era vandalizada com rabiscos, suco, cola, lixo e outras coisas em diferentes dias. O senhor se lembra, Sr. Gladly?”

O Sr. Gladly assentiu, “Sim.”

“E depois da aula, se lembra de me ver no corredor? Cercada por garotas? Sendo humilhada?”

“Eu me lembro de te ver no corredor com outras garotas, sim. Se me lembro bem, não foi muito depois de você ter me dito que queria lidar com isso sozinha.”

“Não era isso o que eu disse,” tive que me segurar para não gritar, “Eu disse que achava que uma reunião como esta daqui seria uma perda de tempo, uma farça. Até agora, não estão me convencendo do contrário.”

“Taylor,” meu pai falou. Ele pôs a mão em um de meus punhos cerrados, e então se dirigiu aos professores, “Estão acusando minha filha de inventar tudo o que ela documentou aqui?”

“Não,” a diretora disse, “Mas acho que quando alguém está sendo vitimizado, é plausível que alguns eventos pareçam ter proporções maiores do que realmente têm. Temos que nos assegurar de que estas três moças recebam o tratamento justo.”

“Eu-” comecei, mas meu pai apertou minha mão, e calei a boca.

“Minha filha merece um tratamento justo também, e mesmo se só uma parcela dessas acusações forem verdade, isso já configura uma série contínua de abuso físico e psicológico. Alguém aqui discorda?”

“Abuso é uma palvra forte,” disse Alan, “Vocês ainda não provaram-”

“Alan,” meu pai o interrompeu, “Cale a boca, fazendo o favor. Não estamos num tribunal. Todos aqui nesta mesa sabem o que essas garotas fizeram, e você não pode nos obrigar a ignorar isto. A Taylor já jantou na sua mesa centenas de vezes, e a Emma fez o mesmo na nossa. Se está chamando ela de mentirosa, diga sem rodeios.”

“Só acho que talvez ela esteja sensível, principalmente depois da morte de sua mãe, ela-”

Empurrei uma pilha de papéis para fora da mesa. Tinha umas trinta ou quarenta folhas, o que fez uma bela nuvem de papéis deslizando no ar.

“Nem mencione esse assunto,” eu disse baixinho, quase não podia me ouvir com o zumbido em meus ouvidos, “Não faça isso. Ao menos finja que é humano.”

Vi um sorrisinho sem vergonha no rosto de Emma, antes de ela colocar os braços sobre a mesa e escondê-lo com as mãos.

“Em janeiro, minha filha foi vítima de um dos ataques mais maldosos, mais nojentos que já ouvi em toda a minha vida,” meu pai falou para a diretora, ignorando os papéis que continuavam deslizando até o chão, “Ela foi parar no hospital. Você olhou em meus olhos e disse que iria cuidar melhor da Taylor. Claramente não cuidou.”

O Sr. Quinlan, meu professor de matemática, disse, “O senhor tem que entender, há outras coisas que demandam nossa atenção. Temos alunos na escola metidos com gangues, temos que lidar com eventos sérios como alunos trazendo facas para a escola, usando drogas, e sofrendo ferimentos letais em brigas dentro do campus. Se não conseguimos presenciar todos os eventos, certamente não é intencional.”

“Então a situação da minha filha não é séria.”

“Não é isso que estamos dizendo,” a diretora respondeu, exasperada.

Alan disse, “Vamos direto ao assunto. O que vocês gostariam que acontecesse, aqui, nesta reunião, que deixaria vocês satisfeitos?”

Meu pai se virou para mim. Havíamos falado sobre isso brevemente. Ele tinha dito que, como representante do sindicato, ele sempre entrava numa discussão com um objetivo em mente. Já tínhamos o nosso. Era minha vez de falar.

“Me transfiram para a Arcadia High.”

Alguns dos presentes demonstraram surpresa.

“Eu estava esperando um pedido de expulsão,” a diretora respondeu, “Muitos estávamos.”

“Nem fodendo,” falei. Pressionei meus dedos nas têmporas, “Desculpe o palavreado. Ainda estou sofrendo os efeitos da minha concussão. Mas não, não quero expulsão. Porque isso só significa que elas podem se inscrever na outra escola mais próxima, a Arcadia, e como não estariam matriculadas em lugar nenhum, passariam na frente da lista de espera. Isso seria um prêmio para elas.”

“Um prêmio,” a diretora disse. Acho que ela estava ofendida. Gostei.

“Sim,” eu disse, sem me importar com seu orgulho ferido, “A Arcadia é uma boa escola. Sem gangues. Sem drogas. Com um bom orçamento. Ela tem uma reputação a manter. Se eu sofresse bullying lá, eu poderia ir até a administração escolar pedir ajuda. Nada disso ocorre aqui.”

“É só isso que você quer?” Alan perguntou.

Balancei a cabeça, “Não. Se dependesse de mim, essas três pegariam suspensão intra-escolar pelos dois meses restantes deste semestre. Sem nenhum privilégio. Não poderiam ir aos bailes, aos eventos da escola, usar os computadores, ou participar de grupos e clubes.”

“A Sophia é uma das nossas melhores na equipe de corrida,” a diretora disse.

“Eu realmente não ligo, mesmo,” respondi. Sophia olhou feio para mim.

“Por que suspensão intra-escolar?” perguntou o Sr. Gladly, “Para isso, alguém precisaria ficar sempre de olho nelas.”

“Eu teria que repor aulas nas férias de verão?” Madison se atentou.

“Teríamos que oferecer uma reposição caso fizéssemos isso, sim,” a diretora disse, “Acho que isso é um pouco demais. Como o Sr. Gladly falou, demanda recursos dos quais não dispomos. Nosso pessoal já tem trabalho o bastante.”

“Suspensão é tipo férias,” retruquei, “isso só faria com que elas pudessem fazer uma visita à Arcadia para se vingar de mim lá. Não. Eu preferiria que elas não tivessem punição alguma do que vê-las suspensas ou expulsas.”

“Isso é sempre uma opção,” Alan brincou.

“Calado, Alan,” meu pai respondeu. Para o resto da mesa, ele disse, “Não vejo nada de impossível no que minha filha está propondo.”

“É claro que não,” a representante de Sophia falou, “O senhor pensaria diferente caso estivesse do outro lado da mesa. Acho importante que a Sophia continue frequentando as atividades esportivas. O esporte dá a ela a estrutura que ela precisa. Negar isso a ela só levaria a um comportamento e conduta piores.”

O pai de Madison acrescentou, “Eu acho que dois meses de suspensão é tempo demais.”

“Devo concordar com isso,” a diretora falou. Ao ver eu e meu pai prontos para revidar, ela ergueu as mãos para nos impedir, “Dados os eventos de janeiro, e com a admissão do Sr. Gladly de que houveram incidentes durante suas aulas, percebemos a presença de um bullying contínuo. Gosto de pensar que meus anos como educadora me deram uma abilidade de reconhecer culpa quando a vejo, e estou certa de que estas garotas são culpadas de parte do que a vítima as está acusando. Proponho uma suspensão de duas semanas.”

“Você sequer ouviu o que eu disse?” perguntei. Meus punhos estavam fechados tão forte que minhas mãos tremiam, “Não estou pedindo uma suspensão. Isso é a última coisa que eu quero.”

“Apoio a posição da minha filha nisso,” meu pai disse, “Eu diria que duas semanas é uma piada, dada essa lista de ofensas criminais que estas garotas cometeram, porém não tem nada de engraçado nisso.”

“Sua lista significaria alguma coisa caso pudesse provar com evidências,” Alan comentou secamente, “E se não estivesse esparramada pelo chão.”

Pensei por um momento que meu pai ia partir pra cima dele.

“Qualquer coisa além de duas semanas impactaria demais o desempenho acadêmico das meninas, ao ponto de elas correrem o risco de reprovação,” a diretora apontou, “Não acho que isso seja justo.”

“E o meu desempenho não sofreu impacto por causa delas?” perguntei. O zumbido em meus ouvidos chegou em seu limite. Percebi, tarde demais, que tinha acabado de dar a ela uma chance de comentar sobre minhas faltas.

“Não estamos dizendo que não,” o tom da diretora era paciente, como se ela estivesse conversando com uma criancinhas, “Mas justiça de ‘olho por olho’ não ajuda a ninguém.”

Ela nem mencionou as faltas. Será que ela sequer sabia delas?

“Tem algum tipo de justiça aqui?” respondi, “Não estou vendo.”

“Elas estão sendo punidas por sua má conduta.”

Tive que me esforçar para mandar os insetos para longe. Acho que eles estavam reagindo ao meu estresse, ou a concussão estava me deixando menos alerta quanto ao que eles estavam fazendo, porque estavam fazendo força para agir mesmo sem uma ordem minha. Nenhum deles havia entrado na escola ou na sala de conferências, graças a deus, mas eu estava cada vez mais aflita com a possibilidade de perder o controle. Se eu o perdesse, ao invés de eles casualmente passearem na minha direção, os insetos iriam imediatemnte irromper num enxame furioso.

Respirei bem fundo.

“Que seja,” falei, “Quer saber? Tá. Deixa elas se safarem com duas semanas de férias como um prêmio pelo que fizeram para mim. Talvez se os pais delas tiverem um mínimo de moral ou de responsabilidade, eles darão uma punição apropriada. Não me importo. Só me transfiram para a Arcadia. Me deixem ir embora daqui.”

“Não é bem algo que eu possa fazer,” disse a diretora, “Há jurisdições-”

“Tente,” implorei, “Dê seus pulos, peça favores, converse com colegas em outros cargos?”

“Não quero prometer nada que eu não possa cumprir,” ela disse.

Ou seja, ‘não’.

Me levantei.

“Taylor,” meu pai pôs sua mão em meu braço.

“Não somos seus inimigos,” a diretora falou.

“Não?” ri um pouco, amargamente. “Que engraçado. Porque parece que são vocês, as bullies e seus pais contra eu e o meu pai. Quantas vezes você me chamou pelo nome hoje? Nenhuma. Você sequer tentou? É um truque usado por advogados. Eles chamam seu cliente pelo nome, mas se referem à outra pessoa como ‘a vítima’, ou ‘o acusado’, dependendo. Faz com que seu cliente seja mais identificável, desumanizando o outro lado. Ele começou a fazer isso desde o começo, talvez até antes da reunião começar, e você entrou nisso sem perceber.”

“Você está paranoica,” a diretora falou. “Taylor. Tenho certeza que eu disse seu nome.”

“Vai pra casa do caralho,” explodi, “Você me dá nojo. Sua desumana, vil, egoísta-”

“Taylor!” meu pai puxou meu braço, “Chega!”

Tive que me concentrar por um segundo e mandar os insetos para longe, de novo.

“Talvez eu traga uma arma para a escola,” falei, encarando os presentes, “Se eu ameaçasse esfaquear uma delas, vocês pelo menos me expulsariam? Por favor?” Pude ver Emma arregalar os olhos ao ouvir isso. Ótimo. Talvez agora ela pensasse duas vezes antes de me incomodar novamente.

“Taylor!” meu pai disse. Ele se levantou e me deu um abraço apertado, com meu rosto contra seu peito para que eu não falasse mais.

“Preciso chamar a polícia?” ouvi Alan dizer.

“Pela última vez, Alan, cale essa boca,” meu pai grunhiu, “Minha filha está certa. Isso é uma piada. Tenho amigos que trabalham na mídia. Acho que vou contatá-los, mandar um email com a lista de incidentes. Talvez pressão popular resolva alguma coisa.”

“Espero que não precise disso, Danny,” Alan respondeu, “Se me lembro bem, sua filha atacou e agrediu a Emma noite passada. Além de tê-la ameaçado aqui, agora há pouco. Poderíamos prestar queixa disso. Tenho a gravação do ocorrido no shopping, e um certificado assinado daquela heroína adolescente, Shadow Stalker, que confirma que ela viu o ocorrido, que poderia ter causado um tumulto.”

Ah. Então era por isso que a Emma estava tão confiante. Ela e seu pai tinham uma carta na manga.

“Há circunstâncias envolvidas,” meu pai protestou, “Ela teve uma concussão, ela foi provocada, e ela só bateu na Emma uma vez. O processo não ia ir pra frente.”

“Não. Mas poderia durar algum tempo. Quando nossas famílias costumavam jantar juntas, se lembra de como eu disse que esses casos acabavam se resolvendo?”

“Por quem ficava sem dinheiro primeiro,” meu pai disse. Senti o abraço ficar um pouco mais apertado.

“Eu posso advogar para divórcio, mas o mesmo princípio se aplica em casos criminais.”

Se usássemos a imprensa, ele prestaria queixas só para esvaziar nossas contas bancárias.

“Achei que fôssemos amigos, Alan,” meu pai respondeu, com a voz esgarçada.

“Éramos. Mas no fim das contas, tenho que proteger minha filha.”

Olhei para meus professores. Para a Sra. Knott, que eu poderia dizer que era minha preferida, “Não estão vendo que baboseira? Ele está nos ameaçando bem na frente de vocês, e não conseguem entender que têm sido manipulados desde o começo?”

A Sra. Knott franziu o cenho, “Não gostei do que ele disse, mas só podemos comentar e agir sobre o que aconteceu na escola.”

“Está acontecendo bem aqui!”

“Você entendeu o que eu quis dizer.”

Saí do abraço. Em minha pressa de sair daquela sala, praticamente fui chutando meu caminho até a porta. Meu pai me alcançou no corredor.

“Me desculpe,” ele disse.

“Tanto faz,” eu disse, “Eu já sabia que ia ser assim.”

“Vamos pra casa.”

Balancei a cabeça, saindo de perto, “Não. Preciso sair daqui. Ir embora. Não vou voltar para o jantar.”

“Chega.”

Esperei um momento.

“Quero que você saiba que eu te amo. Isso ainda não acabou, e vou estar te esperando quando voltar para casa. Não desista, e não faça nada de perigoso.”

Abracei meus braços para tentar fazer minhas mãos pararem de tremer.

“Tá.”

O deixei para trás e fui até o portão de entrada da escola. Olhando duas vezes para ver se ele estava me seguindo ou podia me ver, peguei um dos celulares descartáveis do bolso do meu moletom. Lisa atendeu no primeiro toque. Ela sempre fazia isso – era o jeitinho dela.

“E aí. Como foi?”

Não consegui achar palavras para responder.

“Tão ruim assim?”

“É.”

“Precisa de alguma coisa?”

“Quero bater em alguém.”

“Estamos nos arrumando para um ataque à ADM. Não te incomodamos com isso porque você ainda está se recuperando, e eu sabia que estaria ocupada com sua reunião na escola. Quer vir?”

“Sim.”

“Legal. Estamos nos dividindo para vários ataques coordenados com alguns dos outros grupos. Você estaria com, um minuto-”

Ela disse alguma coisa, mas não para o telefone. Ouvi a voz grave de Brian respondendo.

“Todos os grupos estão se dividindo, é complicado de explicar, mas enfim. A Bitch vai estar com um ou dois membros dos Viajantes, alguém da galera da Faultline e provavelmente alguns da Império-oitenta-e-oito. Ficaríamos aliviados se você fosse junto. Principalmente considerando a tensão entre nós e a Império.”

Eu podia ver o ônibus virando a esquina, se aproximando.

“Chego aí em meia hora.”

Agitação 3.1

Na manhã de terça a primeira coisa que eu fiz foi sair para correr. Acordei no horário normal, me desculpei do meu pai por não tomar o café com ele e saí pela porta, vestindo o capuz para esconder o cabelo bagunçado.

Era interessante estar na rua antes da cidade ter acordado. Foi uma boa descoberta, geralmente eu não saía tão cedo. Enquanto eu ia em direção ao leste numa corrida leve, não haviam carros ou pessoas nas ruas. Eram seis e meia da manhã, e o sol havia acabado de nascer, então as sombras eram compridas. O ar estava frio o suficiente para minha respiração aparecer. Era como se Brockton Bay fosse uma cidade fantasma, mas no bom sentido.

Minha rotina de treino consistia em correr toda manhã, e alternar entre mais corrida de tarde ou fazer outros exercícios, dependendo em que dia da semana era. O objetivo principal era aumentar minha resistência. Em fevereiro, Sophia havia convencido uns garotos a me perseguir, acho que era pra me amarrar com fita isolante num poste telefônico. Consegui escapar, graças ao fato de que os garotos não se importaram muito em correr atrás de mim, mas fiquei arfando depois de correr uma mera quadra. Aquilo me alarmou quanto ao que eu poderia passar quando começasse a sair de uniforme. Não muito depois, comecei a treinar. Depois de alguns começos e desistências, consegui estabelecer uma rotina.

Eu estava em melhor forma, agora. Mesmo que eu sempre tivesse sido magricela, antes eu tinha tido aquela combinação incrível de uma barriguinha saliente, peitos pequenos e braços e pernas de palito; o que me fazia parecer um sapo sendo forçado a ficar de pé sobre as pernas traseiras, ou alguma coisa assim. Três meses e meio haviam tonificado meu corpo, me deixando bem esguia, e haviam me dado resistência o suficiente para correr num ritmo bom sem ficar arfando.

Meu objetivo não era só ficar na corridinha de treino, no entanto. Aumentei a velocidade à medida em que as quadras passavam e eu me aproximava da praia. Lá pela quinta quadra, eu estava correndo de verdade.

Meu estilo era não ficar muito preocupada em contar os quilômetros ou medir o tempo. Aquilo só me distraía da minha percepção sobre o meu próprio corpo e seus limites. Se estivesse fácil demais, eu me fazia ir além do que eu tinha ido no dia anterior.

A minha rota variava todo dia, insistência do meu pai, mas geralmente me levava ao mesmo lugar. Em Brockton Bay, ir leste te levava a dois lugares. Ou você acabava nas Docas, ou você acabava no Calçadão. Como a maior parte das Docas não era um lugar muito bom para se andar sozinha num horário desses, dados os crimes e as gangues, eu ficava nas ruas principais, que me levavam para longe das Docas, em direção ao Calçadão. Geralmente era umas sete da manhã quando eu chegava na ponte que passava por cima da rua Lord. De lá, era uma quadra até o Calçadão.

Diminuí a velocidade ao passar da calçada para a plataforma de madeira. Embora minhas pernas doessem e eu estivesse sem fôlego, me forcei a manter um ritmo lento e constante ao invés de parar.

Pelo Calçadão, as pessoas começavam seus dias. A maioria dos lugares ainda estava fechado, com os sistemas de segurança de última geração, placas de aço cobrindo a fachada e barras de ferro para proteção adicional às lojas caras, mas haviam cafés e restaurantes abrindo. Outras lojas tinham vans estacionadas em sua frente, e estavam ocupadas se abastecendo. Haviam poucas pessoas andando por lá, o que facilitou encontrar o Brian.

Brian estava inclinado no corrimão de madeira, olhando a praia. Em cima do corrimão, ao seu lado, estava uma sacola de papel e uma bandeja de papelão com um café em cada um dos quatros buracos. Parei ao seu lado, e ele me cumprimentou com um sorriso.

“É, você é bem pontual,” disse Brian. Ele parecia diferente do que quando eu o vi na segunda-feira. Estava usando um suéter por baixo de uma jaqueta de flanela, seus jeans não tinham nenhum rasgão ou buracos, e suas botas brilhavam. Na segunda, ele tinha me dado a impressão de uma pessoa normal que vivesse nas Docas. As roupas estilosas, de bom caimento que ele usava hoje o faziam parecer alguém que pertencia ao Calçadão, como os clientes que compravam nas lojas em que nada custava menos de cem dólares. O contraste e a facilidade com a qual ele parecia ter feito a transição eram surpreendentes. Minha opinião sobre o Brian aumentou um ponto.

“Oi,” eu disse, me sentindo só um pouco envergonhada por ter demorado tanto pra responder, e dolorosamente desalinhada em sua presença. Eu não tinha pensado que ele ia se vestir tão bem. Eu estava contando com a desculpa de estar com falta de ar para ter demorado para responder. Não podia fazer nada quanto a me sentir mal vestida.

Ele fez um gesto para a sacola de papel, “Tenho donuts e croissants daquele café ali perto, e café também se você quiser.”

“Quero,” eu disse, e daí me senti burra por ter bestamente usado uma fala tão primitiva. Culpei a hora do dia. Para tentar salvar a situação, falei, “Obrigada.”

Peguei um donut coberto de açúcar e mordi. Dava pra perceber logo de cara que não era o tipo de donut que era produzido em massa em alguma fábrica e entregue à noite nas lojas para ser assado de manhã. Esse era fresquinho, provavelmente feito na loja a uma quadra dali, recém-saído do forno.

“Tão bom,” eu disse, lambendo os dedos, antes de pegar um dos cafés. Vendo a marca, olhei para a loja e perguntei, “Os cafés dessa loja não custam, tipo, quinze dólares o copo?”

Brian riu um pouquinho, “A gente pode, Taylor.”

Levei um segundo para processar a ideia até fazer a conexão, e me senti uma idiota. Esses caras ganhavam milhares de dólares numa missão só, e haviam me dado dois mil dólares logo de cara. Eu não estava com vontade de gastar meu dinheiro, sabendo de onde tinha vindo, então ele estava lá no cubículo onde eu guardava meu uniforme, me cutucando a consciência. Eu não poderia contar para o Brian que eu não estava gastando o dinheiro, também, sem contar o motivo.

“É, acho que sim,” eu disse, eventualmente. Encostei os cotovelos no corrimão de madeira ao lado de Brian e olhei para a água. Havia alguns surfistas teimosos se aprontando para começar o dia. Acho que fazia sentido, já que haveriam barcos na água depois.

“Como está seu braço?” ele perguntou.

Estendi meu braço, fechei o punho e o relaxei para demonstrar, “Só dói quando eu flexiono.” Não contei pra ele que tinha doído o suficiente para me fazer perder horas de sono na noite anterior.

“Vamos deixar os pontos por mais ou menos uma semana, acho, antes de tirá-los,” Brian disse, “Você pode ir numa médica e pedir pra ela, ou aparece lá em casa que eu cuido disso pra você.”

Concordei com um aceno. Uma virada do vento cheirando a maresia tirou meu capuz, e tomei um momento para tirar o cabelo da cara e botar o capuz de novo.

“Me desculpe pela Rachel e por todo aquele incidente ontem,” Brian disse, “Eu queria ter pedido desculpas antes, mas achei que fosse ser uma má ideia tocar no assunto perto dela.”

“Tá tudo bem,” eu disse. Eu não tinha certeza de que estava, mas não era culpa dele. Tentei organizar meus pensamentos em palavras, “Eu acho… bem, acho que eu esperava ser atacada por alguém no momento em que vesti um uniforme, então eu não deveria estar surpresa, certo?”

Brian assentiu, mas não disse nada, então acrescentei, “Fiquei um pouco surpresa por ser atacada por alguém da minha própria equipe, mas vou superar.”

“Só pra você saber,” Brian disse, “Pelo que eu vi depois de você ir embora ontem e ao acordar hoje de manhã, parece que a Rachel parou de reclamar tanto sobre a ideia de ter alguém novo na equipe. Ela ainda não aceitou totalmente, mas não acho que vá repetir o showzinho.”

Soltei uma risada abrupta, um pouco envergonhada, “Tomara que não!”

“Ela é um caso especial,” ele explicou, “Acho que é por causa de como foi a infância dela. Sem família, velha demais e… não exatamente a criança mais desejável para ser adotada. Não gosto de falar desse jeito, mas é assim que essas coisas funcionam, sabe?” Ele se virou para olhar para mim.

Assenti.

“Então ela passou uns dez anos em orfanatos e lares temporários, sem família fixa, competindo com as outras crianças pelas coisas mais básicas. Eu diria que ela já tinha seus problemas de socialização antes de ganhar os poderes, e com o jeito que as coisas aconteceram, eles só empurraram ela mais fundo no poço.”

“Faz sentido,” falei, “Li a página dela na wiki.”

“Aí você já sabe o básico sobre ela,” Brian respondeu, “Ela é difícil de lidar, até pra mim, e acho que ela até me considera um amigo… ou a coisa mais próxima de amizade que ela consegue sentir, enfim. Mas se você puder aturar ela pelo menos, vai ver que somos uma boa equipe.”

“Claro,” eu disse, “Vamos tentar, de qualquer forma.”

Ele sorriu para mim, e eu olhei pra baixo, com vergonha.

Avistei um siri passeando pela praia quase exatamente abaixo de nós. Lancei meu poder sobre ele e o fiz parar. Embora eu não precisasse do gesto, apontei para ele com o dedo, mexendo-o devagar e fazendo o siri seguir a direção que eu estava apontando. Já que eu e o Brian estávamos debruçados sobre o corrimão, e não tinha praticamente ninguém no Calçadão que não estivesse ocupado trabalhando ou abrindo sua loja, eu estava confiante que ninguém ia perceber o que eu estava fazendo.

Brian viu o siri dançando em círculos e sorriu. Num tom de conspiração, ele se aproximou de mim e sussurrou, “Você controla siris também?”

Fiz que sim, sentindo a adrenalina de estar assim juntinhos, compartilhando segredos enquanto as pessoas em volta não sabiam de nada. Contei, “Antes, eu achava que só conseguia controlar coisas com um exoesqueleto ou casca. Mas consigo controlar minhocas também, entre outras coisas, e elas não têm casca. Acho que só precisam ser bichinhos com mentes muito simples.”

Fiz o siri andar em círculos um pouco mais, e daí o liberei para fazer o que quisesse da vida.

“É melhor eu ir levar o café da manhã pro pessoal antes que eles venham me procurar. Quer vir comigo?” Brian perguntou.

Balancei a cabeça, dizendo, “Preciso ir pra casa e me arrumar pra ir pra escola.”

“Ah é,” disse Brian, “Eu tinha esquecido desse detalhe.”

“Vocês não vão pra escola?”

“Eu faço aulas online,” ele disse, “Meus pais pensam que é pra eu poder trabalhar e pagar o aluguel do meu apê… o que não é mentira. O Alec largou a escola, a Rachel nunca foi, e a Lisa já conseguiu seu GED (N.T.: tipo um equivalente norte-americano a se formar pelo ENEM). Deve ter colado usando seus poderes, mas ela é formada.”

“Ah tá,” falei, pensando mais sobre o fato de que o Brian tinha um apartamento. Não o fato de que Grue, o supervilão de sucesso tinha um apartamento – Lisa já tinha me dito isso – mas de que Brian, o adolescente com pais e lição de casa tinha. Ele estava sempre mudando o ponto de vista do qual eu o investigava.

“Toma, um presente,” ele falou, pegando alguma coisa no bolso e estendendo a mão.

Senti um momento de trepidação à ideia de receber mais um presente. Os dois mil que eles já tinham me dado já eram um baita peso na minha consciência. Mesmo assim, ia ficar mal pra mim se eu não aceitasse. Me obriguei a aceitar, e ele me passou uma chave com um pequeno chaveiro de miçangas.

“É pro nosso local de negócios,” ele me disse, “E nosso mesmo, é seu também. Pode vir a hora que quiser, mesmo que não tenha ninguém lá. Sentar e assistir TV, comer nossas coisas, sujar o chão de lama, gritar com os outros por sujar o chão de lama, etc.”

“Obrigada,” falei, meio surpresa em realmente me sentir grata.

“Você vem depois da escola então, ou seria melhor eu te encontrar aqui de novo amanhã de manhã?”

Pensei nisso por um segundo. Ontem à noite, não muito antes de eu ir embora, Brian e eu havíamos falado sobre treinamento. Quando eu falei de minhas corridas matinais, ele tinha sugerido me encontrar regularmente. A ideia era me manter por dentro das novidades, já que eu não ia morar no esconderijo como Lisa, Alec e Rachel moravam. Fazia sentido, então eu concordei. Ajudava também o fato de que eu gostava mais do Brian do que de qualquer outro membro do grupo. Ele era mais fácil de entender, sei lá. Não que eu não gostasse da Lisa, mas ficar perto dela me fazia sentir como se eu tivesse a Espada de Dâmocles sobre a minha cabeça.

“Vou lá depois da aula,” decidi em voz alta, sabendo que eu iria amarelar caso não me comprometesse de algum jeito. Antes de ficar presa em mais um assunto na conversa, acenei um tchau rapidinho e comecei minha corrida de volta, segurando firmemente a chave na minha mão.

Chegar em casa e me preparar para a escola me deu uma sensação cada vez maior de pavor, como se tivesse um peso no meu peito. Eu estivera tentando não pensar nas palavras da Emma e da minha fuga da escola com lágrimas no rosto. Eu havia passado horas me revirando na cama, com aquilo passando na minha cabeça repetidamente enquanto a dor no meu punho me mantinha acordada cada vez que eu começava a adormecer. Fora isso, eu tinha conseguido evitar pensar naquilo. Mas agora que eu estava prestes a ir pra aula, era impossível não pensar no assunto enquanto eu voltava para casa, me arrumava e pegava o ônibus.

Eu não conseguia não pensar em como o dia seria. Eu ainda teria que lidar com as consequências de ter faltado duas tardes. Isso seria um problema, principalmente por eu ter perdido a data de entrega do meu trabalho de artes. Lembrei que o trabalho estava na minha mochila, e a última vez que eu a tinha visto foi quando Sophia estava pisando nela, rindo da minha cara.

Tinha também a questão de ir pra aula do Sr. Gladly. Essa aula já era ruim, por ter a Madison na minha sala e ter que fazer os trabalhos com pessoas tipo o Brilhante e o Greg. Saber que eu teria que sentar lá e ouvir o Sr. Gladly dando aula como se ele não virasse as costas pra mim enquanto eu era atacada… aquilo era ainda pior.

Não seria a primeira vez que eu precisaria tentar me animar pra ir pra escola. Me obrigar a ir e ficar. Os piores dias tinham sido no meu primeiro ano do ensino médio, quando as feridas da traição da Emma ainda estavam frescas e eu não tinha experiência o suficiente pra tentar adivinhar o que elas fariam. No começo, era aterrorizante, porque eu ainda não sabia o que esperar, não sabia onde, quando ou se elas chegariam a algum limite. Tinha sido difícil também voltar pras aulas em Janeiro. Eu havia passado uma semana no hospital em observação pela psiquiatria, e eu sabia que todo mundo tinha ouvido a história.

Fiquei olhando pela janela do ônibus, vendo as pessoas e os carros. Em dias assim, após ser humilhada em público, me convencer a chegar a um ponto onde eu conseguiria atravessar a porta da escola era uma questão de fazer acordos comigo mesma e tentar enxergar além do dia de aula. Eu disse a mim mesma que iria para a aula de computação da Sra. Knott. Nenhuma das meninas do Trio estaria lá, era uma aula tranquila, e eu podia aproveitar o tempo para usar a internet. Daquele ponto, seria mais fácil eu me convencer a andar pelo corredor para a aula do Sr. Gladly.

Se eu conseguisse fazer isso, prometi a mim mesma, eu me daria um prêmio. Passar a hora do almoço lendo um dos livros que eu estava guardando, ou comprar um lanche gostoso depois da aula. Para as aulas da tarde, eu inevitavelmente encontraria alguma coisa pra me animar, como assistir uma série ou mexer no meu uniforme. Ou, pensei, talvez eu pudesse pensar em encontrar a Lisa, o Alec e o Brian. Fora a parte em que eu quase fui assassinada pelos cachorros da Bitch, tinha sido uma noite legal. Comida asiática, nós cinco nos dois sofás, assistindo um filme de ação numa tela enorme com home theater. Eu não estava esquecendo o que eles eram, mas assim, não tinha problema nenhum em passar tempo com eles, já que nós éramos – para todos os propósitos – só um grupo de adolescentes. Até porque era tudo para uma boa causa, já que eles se sentiriam seguros à minha volta e poderiam revelar segredos. Né?

Ao sair do ônibus, segurando dois cadernos velhos na mão, mantive isso em mente. Eu poderia relaxar na aula da Sra. Knott, e daí eu só tinha que sobreviver a três aulas de 90 minutos. Talvez, me ocorreu, eu poderia tentar encontrar em conversar com a professora de artes durante a hora de almoço. Isso me manteria longe do Trio, e eu poderia talvez conseguir fazer outro trabalho para entregar ou pelo menos chorar uma nota pra não ficar com zero. Minhas notas eram boas o suficiente para que eu conseguisse passar com esse zero, mas ainda assim, ajudaria. Eu queria ir melhor do que só passar nas matérias, principalmente com todo esse inferno que eu tinha enfrentar.

A Sra. Knott chegou na sala de aula junto comigo, e abriu a sala para nos deixar entrar. Como uma das últimas dos 40 alunos a chegar, eu estava atrás da fila. Enquanto esperava por espaço para passar pela porta, vi Sophia conversando com três meninas dessa aula. Parecia que ela havia acabado de chegar de seu treino de corrida. Sophia tinha a pele escura e cabelos pretos tão compridos que quase alcançavam a bunda, embora agora estivessem presos num rabo de cavalo. Não consegui não ressentir o fato de que mesmo suada, meio suja, e tendo sua linda personalidade, com certeza todos os meninos da escola iriam preferir ela a mim.

Ela disse alguma coisa, e todas as meninas riram. Mesmo que eu soubesse, racionalmente, que eu provavelmente não estava na lista dos top 5 assuntos a se falar e que provavelmente não estavam falando de mim, senti o coração afundar. Me aproximei mais da porta, para me afastar das meninas. Não funcionou muito bem. Enquanto um grupo de estudantes entrava na sala, senti Sophia olhando para mim. Ela fez uma expressão bicuda exagerada, traçando um dedo do canto do olho até a bochecha como se fingisse chorar. Uma das meninas percebeu e riu, chegando perto para Sophia cochichar alguma coisa em sua orelha, então as duas riram. Fiquei vermelha com a humilhação. Sophia me deu um último sorrisinho e foi embora enquanto as outras meninas entravam na sala de aula.

Me odiando mesmo ao fazer isso, virei as costas e voltei pelo corredor até o portão de entrada da escola. Eu sabia que seria ainda mais difícil voltar amanhã. Por um ano e três quartos, eu havia suportado tudo isso. Estava nadando contra a maré havia um bom tempo, e mesmo que eu soubesse das consequências que eu sofreria se continuasse a matar aula desse jeito, ainda era muito mais fácil parar de remar e só seguir a correnteza.

Com as mãos enfiadas nos bolsos, já sentindo uma espécie de alívio ambivalente, peguei o ônibus que ia para as Docas.

Insinuação 2.4

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“Ninguém gosta dela. Ninguém quer ela aqui,” disse Julia.

“Que lesada. Nem entregou o trabalho de artes, sexta passada,” respondeu Sophia.

“Se ela nem vai tentar, por que está vindo pra escola?”

Apesar de como a conversa soava, elas estavam falando comigo. Estavam apenas fingindo falar umas com as outras. Era calculado em como podiam manter uma negabilidade plausível ao mesmo tempo em que imaturamente faziam de conta que eu não estava ali. Uma mistura de imaturidade com esperteza que só adolescentes conseguiam fazer. Eu teria rido de como era ridículo, se não fosse comigo.

No momento em que saí da sala, Emma, Madison e Sophia me encurralaram num canto, com outras seis garotas para dar apoio. Eu não podia sair do meio delas sem ser empurrada ou acotovelada de volta para o canto, então não pude fazer mais do que me inclinar na janela, ouvindo enquanto oito garotas matraqueavam uma lista infinita de provocações e insultos. Antes que uma delas terminasse, outra já começava a falar. Enquanto isso, Emma observava ao fundo, quieta, o menor dos sorrisos em seu rosto. Eu não podia olhar para nenhuma das outras garotas sem que elas latissem uma torrente fresquinha de insultos na minha cara, então fiquei encarando Emma.

“A menina mais feia da nossa série.”

Elas nem estavam pensando no que estavam dizendo e um monte dos insultos eram mentiras deslavadas ou contraditórios. Uma dizia que eu era uma puta, por exemplo, e outra dizia que eu fazia rapazes vomitarem ao chegar perto deles. O objetivo não era ser espertas, inteligentes ou corretas. O que importava era o sentimento por trás das palavras, repetidamente, martelando em mim. Se eu tivesse apenas um momento para falar, eu poderia ter inventado umas respostas. Se eu pudesse matar seu movimento, elas provavelmente não voltariam ao ritmo fácil de novo. De qualquer forma, eu não conseguia encontrar as palavras para isso, e não haviam brechas na conversa onde eu não seria cortada.

Mesmo que esta tática em particular fosse nova para mim, eu estive aturando esse tipo de coisa por um ano e meio já. Num certo ponto, eu havia chegado à conclusão de que era mais fácil ficar de boa e aguentar a maioria das coisas. Elas queriam que eu revidasse, porque tudo estava a favor delas. Se eu tentasse lutar contra isso e elas ‘ganhassem’, eu só teria alimentado seus egos. Se eu conseguisse alguma coisa, elas ficariam mais persistentes e más da próxima vez. Então pela mesma razão pela qual não briguei com Madison pela lição que ela tinha me roubado, simplesmente me inclinei sobre a janela e esperei elas se entediarem com a brincadeira ou ficar com fome o suficiente para ir almoçar.

“O que ela usa pra lavar o rosto? Um pedaço de Bombril?”

“Pois deveria! Ficaria mais bonita!”

“Nunca fala com ninguém. Talvez ela saiba que é uma retardada e por isso fica de boca fechada.”

“Não, ela não é esperta o suficiente pra isso.”

A não mais de um metro atrás de Emma, eu pude ver o Sr. Gladly saindo de sua sala. A tirada não parou quando observei-o por suas pastas embaixo do braço, achar as chaves e trancar a porta.

“Se eu fosse ela, eu me suicidava,” uma das garotas anunciou.

O Sr. Gladly se virou para me olhar nos olhos.

“Ainda bem que não fazemos educação física com ela. Imagina ver ela no vestuário? Só de pensar já fico com ânsia de vômito.”

Não sei que expressão eu tinha na cara, mas feliz não era. Não mais que cinco minutos atrás, o Sr. Gladly estava tentando me convencer a ir com ele para a diretoria falar sobre o bullying. Observei enquanto ele me deu um olhar triste, passou as pastas para sua mão livre e foi embora.

Fiquei estupefata. Não consegui entender como ele poderia simplesmente ignorar isso. Quando tentou me ajudar, será que ele estava só se ajudando, fazendo o que era obrigado numa situação que ele não podia ignorar? Será que havia desistido de mim? Depois de tentar ajudar, de sua própria maneira completamente inútil, depois de eu ter negado sua oferta de ajuda duas vezes, será que ele havia decidido que eu não valia o esforço?

“Vocês tinham que ter visto o grupo dela se estrepar na aula agora há pouco. Doeu de assistir.”

Fechei o punho, e então me forcei a abri-lo. Se fôssemos garotos, esse cenário seria totalmente diferente. Eu estava mais em forma do que nunca. Eu poderia ter dado uns socos desde o início, ensanguentar um nariz ou dois, talvez. Sei que perderia a luta no final, sendo empurrada para o chão pela força dos números e chutada enquanto estivesse lá, mas as coisas terminariam ali. Eu ficaria fisicamente dolorida por dias, mas ao menos teria a satisfação de saber que outras também estavam machucadas, e não teria que aceitar esse rio de insultos. Se conseguíssemos fazer bastante estrago, seria chamada a atenção da escola, e eles não poderiam ignorar as circunstâncias de uma luta de uma contra nove. Violência ganha atenção.

Mas as coisas não funcionavam assim. Garotas pegavam pesado. Se eu atacasse Emma, ela correria para a diretoria com alguma história inventada, suas amigas testemunhando a favor dela. Para a maioria das pessoas, pedir ajuda para a escola era suicídio social, mas Emma estava no topo da pirâmide. Se ela fosse para a diretoria, as pessoas só levariam tudo mais a sério. Quando eu voltasse para a escola, a história já teria se espalhado como uma videira, de um jeito que me fizesse parecer uma psicopata. Tudo pioraria. Emma seria vista como a vítima e as garotas que haviam se juntado a ela no bullying a defenderiam.

“E ela é fedida,” uma garota disse, bestamente.

“Tem cheiro de suco de uva e de laranja vencidos,” cortou Madison com uma risadinha. De novo, esse negócio do suco? Suspeitei que essa tivesse sido ideia dela.

Pareceu que elas estavam perdendo o fôlego. Calculei que seria só mais um minuto ou dois antes que se entediassem e fossem embora.

Emma deve ter tido a mesma impressão, porque veio à frente. O grupo se dividiu para dar espaço a ela.

“O que aconteceu, Taylor?” disse Emma. “Você parece tão tristinha.”

Suas palavras não combinavam com a situação. Eu havia mantido a compostura por todo esse tempo. O que eu sentia era mais frustração e tédio do que qualquer outra coisa. Abri a boca para dizer alguma coisa. Um simples “Vai tomar no cu” teria servido.

“Tão triste que tem chorado até dormir essa semana inteira?” ela perguntou.

Minhas palavras pararam na garganta ao processar o que ela havia dito.

Quase um ano antes de começarmos o ensino médio, eu estava na casa dela, ambas tomando o café da manhã e ouvindo música alto demais. A irmã mais velha de Emma havia descido as escadas com o telefone. Abaixamos a música, e era meu pai do outro lado da linha, esperando para me contar com a voz fraca que minha mãe havia morrido num acidente de carro.

A irmã de Emma havia me dado uma carona para minha casa, e eu chorei o caminho inteiro. Lembro de Emma chorando também, por empatia, talvez. Pode ter sido o fato de que ela achava minha mãe a adulta mais legal do mundo. Ou talvez foi porque realmente éramos melhores amigas e ela não tinha ideia de como me ajudar.

Eu não queria pensar nos meses que se seguiram, mas fragmentos me vieram à memória sem eu pedir. Eu podia lembrar de ter ouvido meu pai falando mal do corpo de minha mãe, porque ela estava mandando mensagens enquanto dirigia, e era a única culpada nisso tudo. Houve um ponto em que eu fiquei quase sem comer por cinco dias, porque meu pai estava tão mal que não prestava atenção em mim. Eventualmente pedi ajuda a Emma, pedindo para comer na casa dela por alguns dias. Acho que a mãe dela descobriu o que estava rolando e conversou com o meu pai, porque ele começou a se endireitar. Estabelecemos nossa rotina, e não nos separaríamos como família de novo.

Foi um mês depois de minha mãe ter morrido que Emma e eu estávamos sentadas na ponte de um brinquedo no parque, nossos traseiros frios por causa da madeira úmida, tomando um café que havíamos comprado na Buraco de Donut. Não tínhamos nada pra fazer, então só ficamos andando e falando sobre qualquer coisa. Nossa caminhada havia nos levado ao parquinho, e estávamos descansando os pés.

“Sabe, eu admiro você,” ela havia dito, abruptamente.

“Por quê?” eu havia respondido, completamente encantada com o fato de que alguém linda e incrível e popular como ela poderia achar algo para se admirar em mim.

“Você é tão forte. Depois que a sua mãe morreu, você ficou em pedacinhos, mas você está tão de boa depois de um mês. Eu não conseguiria fazer isso.”

Eu podia me lembrar de ter admitido, “Eu não sou forte. Eu consigo me segurar durante o dia, mas tenho chorado até dormir essa semana inteira.”

Aquilo havia sido o suficiente para abrir as comportas ali mesmo. Ela me deu seu ombro para chorar, e nosso café esfriou antes de eu me recompor.

Agora, eu olhava para Emma, de boca aberta, sem palavras, seu sorriso alargado. Ela lembrava o que eu tinha dito, então. Ela sabia as memórias que isso traria à tona. Em algum ponto, aquela lembrança havia passado por sua mente, e ela havia decidido transformá-la numa arma. Esteve esperando para atirá-la em mim.

Me fodi, porque funcionou. Senti uma lágrima escorrendo pela bochecha. Meu poder rugiu nas bordas da minha consciência, agitado, me pressionando. Eu o suprimi.

“Tem mesmo! Ela está chorando!” Madison riu.

Com raiva de mim mesma, passei a mão na bochecha para limpar a lágrima. Mais já estavam chegando, prontas para substituí-la.

“É como se você tivesse um superpoder, Emma!” uma das garotas falou.

Eu havia tirado minha mochila para poder me recostar na parede. Me inclinei para pegá-la, mas antes que eu pudesse fazê-lo, um pé deslizou pela alça e a arrastou para longe de mim. Olhei para cima e vi a dona do tal pé – a esbelta, morena Sophia – me dando um sorrisinho arrogante.

“Ai meu deus! O que ela está fazendo?” uma das garotas disse.

Sophia se recostava na parede, um pé casualmente em cima da minha mochila. Não pensei que fosse valer a pena lutar para ter a mochila de volta, se isso desse a ela uma oportunidade de continuar seu joguinho. Deixei a mochila onde estava e abri caminho empurrando as outras garotas, esbarrando num observador curioso forte o suficiente para fazê-lo tropeçar. Corri para as escadas e pela porta da frente no andar térreo.

Fugi. Não chequei, mas provavelmente elas estavam olhando da janela no fim do corredor. Não importava muito. O fato de eu ter prometido pagar trinta e cinco pratas do meu próprio dinheiro por um livro novo de Questões Mundiais para substituir o que havia sido encharcado com suco de uva não era minha prioridade. Mesmo que fosse quase todo o dinheiro que eu tinha depois de comprar as partes do meu uniforme. Meu trabalho de artes também estava na mochila, recém-consertado. Eu sabia que não o conseguiria de volta inteiro, se o conseguisse.

Não, minha preocupação no momento era sair de lá. Eu não quebraria a promessa que havia feito a mim mesma. Nada de usar poderes nelas. Este era o limite que eu não ultrapassaria. Mesmo se eu fizesse algo inócuo, como passar piolhos pra todas elas, eu não achava que ia parar ali. Eu não confiava em mim mesma o suficiente para manter minhas habilidades em segredo, sem nenhuma pista óbvia, só para ver a cara delas quando percebessem que a garota que tinham estado atormentando era uma super heroína em formação. Era algo em que eu não podia deixar de pensar, mas eu sabia que as consequências a longo prazo estragariam isso.

Talvez a coisa mais importante, pensei, fosse manter os dois mundos separados. De que me servia uma rota de fuga, se o mundo para o qual eu fugia estivesse cheio das pessoas e coisas que eu queria evitar?

Antes que o pensamento de voltar para a escola passasse por minha mente, me vi pensando no que eu faria esta tarde.

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Gestação 1.1

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Nota breve do autor: Essa história não é recomendada para leitores muito jovens ou sensíveis. Leitores que não gostam/podem ler cenas fortes não são aconselhados a ler Worm.

Nota da tradutora: Essa história se passa nos Estados Unidos e foi escrita por um canadense, portanto tomei a liberdade de explicar o significado de expressões não-familiares aqui no Brasil. Também optei por manter os nomes dos personagens em inglês, com uma nota explicatória de seus significados quando necessário.

A aula terminava em cinco minutos e tudo o que eu podia pensar era, uma hora é tempo demais pro almoço.

Desde o começo do semestre, eu tinha estado ansiosa para a aula em que começaríamos a discutir capas na disciplina Questões Mundiais do Sr. Gladly. Agora que ela finalmente chegara, eu não conseguia me concentrar. Eu estava inquieta, movendo a caneta de uma mão para a outra, batucando na carteira, ou desenhando alguma coisa no canto da página junto com outros rabiscos. Meus olhos estavam agitados também, indo do relógio acima da porta para o Sr. Gladly e de volta para o relógio. Eu não estava prestando atenção o suficiente no que o professor dizia para acompanhar a aula. Vinte minutos pro meio-dia; cinco minutos faltando para a aula acabar.

Ele estava entusiástico, claramente animado sobre o que estava falando, e, pela primeira vez, a turma estava escutando. Ele era o tipo de professsor que tentava ser amigo dos alunos, o tipo que preferia ser chamado de “Sr. G” ao invés de Sr. Gladly. Gostava de terminar a aula um pouco mais cedo que o normal e conversar com os populares, dava um monte de trabalhos em grupo para que os alunos pudessem ficar com seus amigos durante a aula, e fazia ‘dinâmicas divertidas’ como debates.

Ele me parecia um daqueles adolescentes “populares” que virou professor. Provavelmente pensava que era o preferido de todos. Eu imaginava como ele reagiria se ouvisse a minha opinião sobre o assunto. Será que quebraria a auto-imagem que ele tinha de si mesmo, ou ele ignoraria isso como uma anomalia da garota sombria que nunca participava da aula?

Olhei por cima do ombro. Madison Clements sentava duas fileiras à minha esquerda e dois assentos atrás. Ela me viu olhando e deu um sorrisinho afetado, seus olhos se estreitando, e baixei os meus para meu caderno. Tentei ignorar a sensação feia, azeda que embrulhava meu estômago. Voltei a olhar para o relógio. Onze e quarenta e três.

“Me deixem terminar aqui,” disse o Sr. Gladly, “Desculpem, pessoal, mas há lição de casa pro fim de semana. Pensem nas capas e em como elas impactaram o mundo ao seu redor. Façam uma lista se quiserem, mas não é obrigatório. Na segunda-feira vamos nos dividir em grupos de quatro pessoas e ver qual grupo tem a melhor lista. Vou comprar doces da máquina de guloseimas para o grupo vencedor.”

Houve uma série de comemorações, seguida pela classe se transformando num caos barulhento. A sala se encheu com os sons de fichários, livros e cadernos sendo fechados, cadeiras arranhando os ladrilhos baratos e o barulho chato de conversas. Um punhado dos membros mais sociais da turma se reuniu perto do Sr. Gladly para papear.

Eu? Guardei meus livros e fiquei quieta. Não tinha escrito quase nada de anotações; haviam coleções de rabiscos se espalhando pela página e números nas margens onde eu tinha feito uma contagem regressiva dos minutos que faltavam para o almoço como se estivesse acompanhando o timer de uma bomba.

Madison conversava com seus amigos. Ela era popular, mas não linda do jeito esteriotipado que as garotas populares da TV eram. Ao invés disso, era “adorável”. Pequena, magrinha. Ela incitava essa imagem com presilhas azul celeste em seu cabelo castanho na altura dos ombros e uma atitude fofinha. Madison usava uma blusa tomara-que-caia e uma saia jeans, o que parecia totalmente besta pra mim já que estávamos no comecinho da primavera e ainda dava pra ver nossa respiração no ar de manhã.

Eu não estava exatamente numa posição de criticá-la. Meninos gostavam dela e ela tinha amigos, enquanto o mesmo não era verdade pra mim. A única característica feminina que eu tinha era meu cabelo cacheado e escuro, que eu deixei crescer. As roupas que eu usava não mostravam pele, e eu não me exibia em cores vibrantes como um pássaro exibindo suas plumas.

Os garotos gostavam dela, eu acho, porque ela era atraente sem ser intimidadora.

Ao menos se eles soubessem.

O sinal tocou com um dim-dom crescente, e fui a primeira a sair da sala. Eu não corri, mas andei numa velocidade boa enquanto subia as escadas para o terceiro andar e caminhava até o banheiro das meninas.

Uma meia dúzia de meninas já estavam já, o que significava que eu tinha que esperar até uma porta abrir. Nervosamente eu observava a porta do banheiro, sentindo meu coração pular cada vez que alguém entrava.

Assim que havia uma divisória livre, entrei e tranquei a porta. Me encostei na parede e soltei a respiração devagar. Não era exatamente um suspiro de alívio. Alívio quer dizer que você se sente melhor. Eu não me sentiria melhor até chegar em casa. Não, eu apenas me sentia menos apreensiva.

Demorou uns cinco minutos até o barulho das outras pessoas no banheiro parar. Uma espiada por baixo das divisórias mostrou não ter mais ninguém nas outras privadas. Sentei na tampa do vaso e peguei meu lanche na sacola marrom de papel para começar a comer.

Almoçar no banheiro era rotina agora. Todo dia letivo, eu terminaria meu almoço e então faria a lição de casa ou leria um livro até a hora do almoço acabar. O único livro na minha mochila que eu ainda não tinha lido era chamado “Triumvirato”, uma biografia dos três líderes do Protetorado. Estava pensando em demorar o mais possível na lição do Sr. Gladly antes de ler, porque não estava gostando do livro. Biografias não faziam meu estilo, principalmente quando eu suspeitava que era tudo inventado.

Qualquer que fosse meu plano, não tive a chance nem de terminar meu beirute. A porta do banheiro se abriu com um estalo. Congelei. Eu não queria fazer um ruído com a sacola e dar uma dica a alguém do que eu estava fazendo, então fiquei quieta, escutando.

Não consegui identificar as vozes. O barulho da conversa foi obscurecido por risadinhas e o som da água nas pias. Houve uma batida na porta, me fazendo pular. Ignorei, mas a pessoa do outro lado apenas bateu de novo.

“Ocupado,” gritei, hesitante.

“Ai meu deus, é a Taylor!”, uma das meninas o lado de fora exclamou com alegria, e em resposta outra sussurou algo que quase não ouvi, “É, faça isso!”

Me levantei abruptamente, derrubando a sacola de papel com o resto do meu almoço no chão ladrilhado. Destranquei e empurrei a porta. Ela nem se mexeu.

Ouvi barulhos nas divisórias dos dois lados da minha, e então um som acima de mim. Olhei para ver o que era, só para ficar com a cara molhada. Meus olhos começaram a arder, e fiquei momentaneamente cega pelo fluido queimante em meus olhos e o borrão em meus óculos. Senti seu gosto enquanto escorria pelo meu nariz e minha boca. Suco de cranberry.

Elas não pararam por aí. Consegui tirar meu óculos bem a tempo de ver Madison e Sophia se inclinando acima do topo da divisória, ambas com garrafas plásticas a postos. Me encolhi, minhas mãos cobrindo a cabeça logo antes de elas esvaziarem o conteúdo em mim.

Escorreu pela minha nuca, encharcou minhas roupas, borbulhou enquanto escorria pelo meu cabelo. Empurrei a porta de novo, mas a garota do outro lado empurrou de volta com seu corpo.

Se as garotas derramando suco e refrigerante em mim eram Madison e Sophia, isso significava que a garota do outro lado era Emma, líder do trio. Sentindo raiva ao perceber isso, empurrei a porta com força, todo o peso do meu corpo batendo contra ela. Não consegui nada, e meus sapatos não tinham tração no chão melecado de suco. Caí de joelhos na poça açucarada.

Garrafas plásticas vazias com os rótulos de suco de uva e cranberry caíram no chão perto de mim. Uma garrafa de refrigerante de laranja quicou no meu ombro para cair com um splash na poça antes de rolar por baixo até a próxima divisória. O cheiro das bebidas de frutas era enjoadamente doce.

A porta se abriu, e olhei para as três com uma carranca. Madison, Sophia e Emma. Onde Madison era fofa, com “desenvolvimento atrasado”, Sophia e Emma eram o tipo de garota que combinava com a imagem de “rainha do baile”. Sophia tinha a pele escura, com um corpo esguio e atlético que ela desenvolvera participando do time de corrida da escola. A ruiva Emma, por contraste, tinha todas as curvas que os garotos queriam. Ela era bonita o suficiente para conseguir empregos ocasionais como modelo amadora para os catálogos dos shoppings e lojas de departamento locais. As três estavam rindo como se fosse a coisa mais engraçada do mundo, mas os sons de seu entretenimento mal foram registrados por mim. Minha atenção estava no fraco som do sangue pulsando em meus ouvidos e um ruído sinistro, ameaçador que não ficaria mais quieto ou menos persistente se eu cobrisse minhas orelhas com as mãos. Eu podia sentir gotas correndo pelos meus braços e costas, ainda geladas pelas máquinas refrigeradas de guloseimas.

Eu não confiava em mim mesma para dizer algo que elas não tentassem usar contra mim, então fiquei em silêncio.

Cuidadosamente, fiquei em pé e virei as costas para elas para pegar minha mochila da tampa do vaso sanitário. Vê-la me fez pausar. Tinha sido um verde cinzento, ante, mas agora manchas roxo-escuras a cobriam, a maior parte do conteúdo da garrafa de suco de uva. Pondo as alças em meus ombros, me virei. As garotas não estavam lá. Ouvi a porta do banheiro bater fechada, cortando os sons de sua alegria, me deixando sozinha no banheiro, ensopada.

Me aproximei da pia e fitei a mim mesma no espelho arranhado e manchado que estava pregado acima dela. Eu tinha herdade uma boca larga, expressiva e com lábios finos da minha mãe, mas meus olhos grandes e cara de embasbacada me faziam parecer muito mais com meu pai. Meu cabelo escuro estava molhado o suficiente que grudava em minha cabeça, pescoço e ombros. Eu vestia um moletom marrom com capuz sobre uma camiseta verde, mas manchas coloridas de roxo, vermelho e laranja listravam ambos. Meus óculos estavam cheios de gotinhas multicoloridas de suco e refrigerante. Uma correu pelo meu nariz e caiu de sua ponta na pia.

Usando uma toalha de papel, limpei meus óculos e os coloquei de novo. As manchas residuais ainda dificultavam a visão, isso se não estivesse pior.

Respire fundo, Taylor, eu disse a mim mesma.

Tirei os óculos para limpá-los de novo com uma toalha molhada, e descobri as manchas ainda ali.

Um grito inarticulado de fúria e frustração saiu de meus lábios, e chutei o balde de plástico que estava embaixo da pia, fazendo-o voar até a parede com a escova de limpeza dentro dele. Quando aquilo não foi o suficiente, tirei minha mochila e a joguei usando as duas mãos. Eu não usava mais meu armário: certos indivíduos o tinham vandalizado ou arrombado em quatro ocasiões diferentes. Minha mochila estava pesada, cheia com tudo o que eu precisava para as aulas do dia. O impacto fez um som de ‘tum’ contra a parede.

“Mas que porra!?”, gritei para ninguém em particular, minha voz ecoando no banheiro. Haviam lágrimas no canto dos meus olhos. “O que caralhos eu devo fazer!?”, eu queria socar algo, quebrar algo. Retaliação contra a injustiça desse mundo. Quase bati no espelho, mas me contive. Era uma coisa tão pequena que senti como se fosse me fazer sentir ainda mais insignificante, ao invés de extravasar minha frustração.

Eu tinha aturado isso desde o primeiro dia do ensino médio, um ano e meio atrás. O banheiro tinha sido a coisa mais próxima que eu pude encontrar de refúgio. Tinha sido solitário e indigno, mas era um lugar para o qual eu podia recuar, um lugar onde eu estava fora do radar delas. Agora eu não tinha nem aquilo.

Eu não sabia nem o que fazer para minhas aulas vespertinas. Nosso trabalho de artes de meio de semestre estava para ser entregue, e eu não podia ir para a aula desse jeito. Sophia estaria lá, e eu conseguia imaginar seu sorrisinho metido de satisfação ao me ver entrar na sala parecendo ter falhado uma tentativa de fazer tie-dye em tudo o que eu possuía.

Além disso, eu tinha acabado de jogar minha mochila contra a parede e duvidava que meu trabalho ainda estivesse inteiro. O zumbido na ponta de minha consciência estava piorando. Ao me dobrar sobre a pia e agarrar sua borda, respirando fundo bem devagar, minhas mãos tremiam, e abandonei a defesa. Por três meses, eu me segurei. Agora? Eu não me importava mais.

Fechei meus olhos e senti o zumbido cristalizar em informações concretas. Tão numerosos quanto as estrelas no céu noturno, minúsculos nós de dados intrincados encheram a área ao meu redor. Eu podia focar em cada um por sua vez, pegar detalhes. Os montinhos de informação tinham estado reflexivamente vindo em minha direção assim que fui borrifada na cara. Eles respondiam a meus pensamentos e emoções subconscientes, sendo uma reflexão de minha frustração, minha raiva, meu ódio por aquelas três garotas tanto quanto meu coração batendo forte e minhas mãos tremendo. Eu podia fazê-los parar ou se mexer quase sem pensar nisso, da mesma forma que eu podia levantar um braço ou dobrar um dedo.

Abri os olhos. Eu podia sentir adrenalina pulsando no meu corpo, sangue fluindo pelas veias. Tremi em resposta ao frio que sentia depois de ter sido encharcada com as bebidas geladas que o trio derramara em mim, em antecipação e com um pouquinho só de medo. Em toda superfície do banheiro haviam insetos; moscas, formigas, aranhas, centopeias, piolhos, besouros, vespas e abelhas. A cada segundo que passava, mais vinham da janela aberta e das várias aberturas no banheiro, se movendo com uma velocidade surpreendente. Alguns rastejavam por um vão onde o ralo da pia entrava na parede enquanto outros emergiam do buraco triangular no teto onde uma seção de ladrilho tinha sido quebrada, ou da janela aberta com tinta descascando e bitucas de cigarro enfiadas nas rachaduras. Eles se reuniam em volta de mim e se espalhavam por toda superfície disponível; pacotes primitivos de sinais e respostas, esperando instruções.

Minhas sessões de treinamento, feitas longe de olhares curiosos, me ensinaram que eu poderia fazer um único inseto mover uma antena, ou comandar a horda toda a se mover em formação. Com um pensamento, eu poderia separar particularmente qualquer grupo, maturidade ou espécie e dirigi-los como eu desejasse. Um exército de soldados sob meu completo controle.

Seria tão fácil, tão fácil simplesmente bancar a Carrie (N.T.: referência a ‘Carrie, a Estranha’) na escola. Dar ao trio sua justa recompensa e fazê-las se arrepender do que tinham me feito passar: os e-mails perversos, o lixo que colocavam na minha mesa, minha flauta – a flauta da minha mãe – que elas roubaram do meu armário. Não era só elas também. Outras garotas e um punhado de garotos haviam se juntado a elas, ‘acidentalmente’ me pulando ao entregar os trabalhos, adicionando suas vozes às provocações e à enchente de e-mails nojentos, para conseguir o favor e a atenção de três das mais bonitas e populares garotas da nossa série.

Eu tinha plena consciência de que seria pega e presa se eu atacasse meus colegas estudantes. Haviam três times de super heróis e qualquer número de heróis solo na cidade. Eu não me importava de verdade. A ideia de meu pai vendo os resultados no jornal, seu desapontamento em mim, sua vergonha? Aquilo era mais apavorante, mas ainda não sobrepunha a raiva e a frustração.

Só que eu era melhor que tudo isso.

Com um suspiro, mandei uma instrução ao enxame reunido. Dispersar. O que importava não era muito a palavra, mas sim a ideia por trás dela. Eles começaram a sair do banheiro, desaparecendo entre as rachaduras no ladrilho e pela janela aberta. Andei até a porta e encostei as costas nela para que ninguém entrasse na cena antes que todos os insetos fossem embora.

Não importando o quanto eu quisesse, eu não poderia realmente seguir com o plano. Mesmo enquanto eu tremia com a humilhação, eu consegui me convencer a pegar minha mochila e sair pelo corredor. Continuei meu caminho para fora da escola, ignorando os olhares e as risadas de todos a quem eu passava, e peguei o primeiro ônibus que parasse perto de casa. O frio do começo da primavera combinou-se ao desconforto de minhas roupas e cabelos encharcados, me fazendo tremer.

Eu iria ser uma super heroína. Este era o objetivo que eu usava para me acalmar em momentos como esses. Era o que me fazer sair da cama num dia de aula. Era um sonho louco que deixava as coisas toleráveis. Era algo para esperar por, algo para trabalhar por. E me possibilitava parar de pensar no fato de que Emma Barnes, líder do trio, tinha sido minha melhor amiga.

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