Casca 4.10

Gradualmente, descobri que eu podia abrir os olhos, como se fosse algo que eu tivesse esquecido como fazer. Experimentei e me arrependi instantaneamente. Um dos meus olhos não estava vendo nada, mesmo aberto, e o outro estava fora de foco; até quando eu conseguia ver alguma coisa, as imagens não faziam sentido. Fechando os olhos com força, até o brilho vermelho difuso da luz passando através de minhas pálpebras era como fogos de artifício explodindo em minhas retinas.

Quando tentei pensar para ver se entendia o que tinha acontecido, descobri que meus pensamentos estavam extremamente lentos.

“Se vocês bostinhas tivessem alguma noção, saberiam que ficar na vantagem em relação a mim, mesmo que seja só por um instante… é algo que deveria aterrorizar vocês,” uma voz sibilou. Levei alguns segundos para identificar a voz, muito mais do que eu deveria. Bakuda.

Estava começando a doer. Como cortes de papel, mas duzentas vezes maiores, e cada um desses cortes era um músculo meu. Minha pele estava pinicando com ardências que gradualmente pareciam-se mais e mais com queimaduras. Minhas juntas latejavam como se cada uma tivesse sido arrancada de seu lugar e alguém estivesse batendo as pontas em carne viva no asfalto num ritmo sombrio.

Abri meu olho bom novamente e tentei, sem sucesso, focá-lo. Três faixas vermelhas… não. Eu estava vendo triplo. Uma faixa vermelha se estendia pela minha máscara, descendo pela ponta onde ela cobria o nariz, pingando no chão. Quando olhei para o asfalto, vi uma poça ainda crescendo. Percebi que eu estava sangrando. Um monte.

“Me deixar lá deitada com um lançador de granadas na mão e munição espalhada na porra da rua inteira, vocês pediram por isso. Caralho, só aquela merda toda de ficar se abraçando super aliviados, como se tivessem me derrotado mesmo? Pedindo pra levar uma na fuça.”

Eu não iria me render assim. Não sem uma luta. Mas eu nem conseguia me mexer direito, que dirá fazer alguma coisa. Meu desejo de fazer algo era quase tão excruciante quanto a dor que latejava e pulsava por todo o meu corpo. O que eu poderia fazer? Minha mente não estava funcionando tão devagar quanto estivera agora há pouco, mas meus pensamentos ainda estavam lentos e falhos. Coisas que eu deveria saber sem pensar estavam vagas, incertas, desconexas. Ideias demais estavam isoladas, desligadas de outros conceitos. Eu estava com vontade de jogar alguma coisa no chão, ao menos se eu pudesse me mexer sem fazer tudo doer muito. Resolvi cerrar os punhos.

Escola. Problemas na escola? Eu? O Trio? Não. Por que eu estava pensando sobre isso? No que eu estava pensando antes de ficar tão frustrada? Eu queria revidar de alguma forma. Bakuda, escola, revidar. Quase gemi de frustração ao tentar conectar as ideias isoladas, e simplesmente não consegui completar o pensamento. Só consegui bufar um pouco, tremendo com a dor que isso causou.

“Oh? A garotinha inútil com a roupa de inseto acordou,” a voz chiada de Bakuda anunciou para o ar noturno.

Grue disse alguma coisa, a uma pequena distância dali, não ouvi o que era.

Bakuda respondeu sem pensar muito, “Shh, fica de boa aí. Já já chega a sua vez.”

Ouvi alguma coisa, e vi um par de botas cor de rosa aparecer na frente do meu rosto, a imagem nadando e balançando levemente.

“Dia ruim?” ela se inclinou sobre mim, “Que bom. Sabe, uma dos meus capangas trabalha lá no Quartel General do Protetorado. Ela é um guarda onde o Lung está preso, saca? Não teve a oportunidade de libertá-lo, mas ela conseguiu a versão dele dos fatos. Eu sei que era você a esquisitinha que pôs ele no xilindró. Então hoje você vai ser minha convidada de honra. Vai ficar olhando eu mexer com seus amiguinhos. Vou começar com o menino de preto, e depois os seus coleguinhas adormecidos ali do lado. Colei eles no chão só por precaução. Quando seus amigos estiverem de paletó de madeira, vou dar você para o Oni Lee. Ele foi um rapaz muito educado quando ocorreu de mudarem as coisas, e agora fica me enchendo o saco, quer um brinquedo novo. O que você acha disso?”

Eu não estava ouvindo direito. Como se fosse um mantra, eu estava repetindo mentalmente a mesma coisa, de novo e de novo. Bakuda, escola, revidar.

“Bakuda, escola,” balbulciei. Ouvir minha voz soar tão fraca e fina foi mais assustador do que qualquer das outras coisas que haviam passado pela minha consciência nos últimos minutos.

“O que é? A baratinha quer dizer alguma coisa?” Ela se abaixou e agarrou o pedaço de armadura que cobria meu peito. Com um puxão, ela me colocou numa posição meio-sentada. Ser puxada daquele jeito foi uma tortura, mas a dor ajudou a atiçar meus pensamentos e me deu um pouco de clareza.

“Escola. Bakuda falhou,” eu respondi, minha voz minimamente mais forte do que havia sido anteriormente. As lentes vermelho-escuras de seus óculos de proteção encararam as minhas enquanto eu compunha meus pensamentos para falar novamente, tentando soar mais coerente. “Você se acha muito esperta, mas falhando desse jeito? Como que é? Segundo lugar? Nem o segundo?” Consegui fazer um som que se aproximasse de uma risada.

Ela me soltou e se afastou como se eu estivesse pegando fogo. Quando minha cabeça bateu no asfalto, quase desmaiei. Tive que lutar para ficar consciente. Aceite a dor. Te mantém desperta.

A uma pequena distância de mim, a voz de Grue ecoou. Só consegui entender a primeira palavra. “Ela” ou “Cela”. Ele riu. Eu não consegui entendê-lo e eu não sabia por que, e isso me assustou. Eu não estava ouvindo tão bem como de costume, eu sabia disso. Mas não era só isso. O que mais?

A distorção. A explosão ou explosões haviam danificado minha audição, talvez, e eu não conseguia entender as palavras dele com o efeito que ele colocava na voz. Só de descobrir isso já me senti mil vezes melhor.

“Você acha?” Bakuda sibilou para Grue. As palavras dela eram mais fáceis de entender, já que a máscara dela as reconstruía, de forma que elas eram enunciadas perfeitamente num monotom, mesmo com todo o chiado.

Ela me chutou na cara com uma daquelas botas rosa. Ter que mover a cabeça quase doeu mais do que ter os dentes quebrados. Ela me agarrou pelo uniforme e me arrastou por vários metros. Isso fez toda a dor em geral aumentar mais um ponto. Numa escala de um a dez, daria pra marcar um nove e meio. Nada que eu fizesse poderia doer mais do que aquilo, de modo que juntei força física e mental para erguer os braços e segurá-la pelos pulsos, como se fosse grande coisa. Ela me soltou e me deu um empurrão para que eu ficasse de lado. O movimento me deu ânsia de vômito.

Ver Grue ajudou a me manter acordada enquanto eu lutava contra a náusea e dava minúsculas golfadas de ar com a dor. Ele estava amarrado numa posição meio-sentada contra um galpão com o que parecia ser um monte de fita amarela grudenta. Onde estava Tattletale?

“Vamos ver se vocês continuam tão espertinhos depois de eu dar meu presentinho para o sr. moreno alto, bonito e sensual (N.T.: ‘tall, dark and handsome’ é uma expressão em inglês que quer dizer basicamente isso),” Bakuda ameaçou, “Deixa eu ver… ah. Essa é uma pérola. Dois vinte e sete. Agora fique quietinho. Se você sequer pensar em usar seu poder, vou enfiar essa coisa goela abaixo da pirralha pernilonga ali, e detonar. Não é como se você pudesse fazer alguma coisa para me impedir, mesmo que me deixe surda e cega.”

Ela tirou suas luvas cor de rosa e as jogou para longe. Então pegou o que parecia ser uma tesoura bem comprida e fina de dentro de sua manga. Só que as pontas não eram afiadas, era quase um alicate (N.T.: o nome disso é pinça hemostática). As pontas tilintaram ao se fechar segurando o que parecia uma pílula de metal.

“Não vai precisar de cirurgia, já que não vai ficar aí muito tempo. O que eu vou fazer é enfiar isso pela sua narina e deixar na sua cavidade nasal.” Ela pôs a mão na escuridão que estava vazando em toda a volta dele e procurou seu rosto. “Só preciso tirar essa sua máscara… capacete… Pronto.”

Se ela havia conseguido, era difícil dizer. A cabeça de Grue era só uma silhueta redonda de sombras.

Ela pôs uma mão lá dentro de novo e empurrou a cápsula no meio daquilo com a outra. “E aí está… vá devagar, coisinha, vá devagar… não quero ativá-la antes da hora, os efeitos só vão ser legais mesmo se ela estiver lá no fundo. Sabe, a minha dois vinte e sete foi meio que um acidente. Eu estava lendo sobre os poderes da pequena Vista, pensei que talvez eu pudesse fazer uma bomba de distorção espacial. Por pura sorte, quebrei o efeito Manton. Ou pelo menos o que quer que eu tenha usado ao fazer essa bomba ultrapassou o efeito Manton. Vocês sabem o que é isso, idiotas?”

Ela parou e estralou os nós dos dedos, deixando a tesoura estranha enfiada na cara do Grue. “É aquela regrinha que impede os pirocinéticos de ferver o seu sangue, que não deixa a maioria dos poderes afetar os corpos das pessoas. Ou, dependendo de qual teoria você segue, é a regra que diz que ou seu poder só funciona em coisas orgânicas, seres vivos; ou no resto das coisas.

“Então pense nisso. Um efeito de distorção espacial que só funciona em matéria viva. Eu detono essa coisa, e toda a matéria viva dentre um metro da cápsula é distorcida, inflada, encolhida, entortada. Na verdade nem mata. Essa é a segunda coisa mais incrível sobre ela, depois do efeito Manton. Tudo ainda se conecta com o resto. Totalmente não-letal, mas você vai desejar ter morrido pelo resto da sua vidinha miserável.”

Não fique aí deitada só olhando, pensei. Faz alguma coisa!

“Só um clique, e bum, você fica tão feio que dá vergonha até no homem-árvore. Pode ser uma cabeça quatro vezes maior do que o normal, com caroços espalhados feito tumores, cada parte do corpo do tamanho errado, forma errada. O cérebro muda também, mas geralmente só causa um probleminha de leve a moderado, porque eu calibrei para o foco na aparência exterior.” Ela riu. Era aquele som seco, repetitivo, não humano. Quando falou novamente, ela pronunciou cada palavra separadamente: “Irreversível. E. Fodásticamente. Hilário.”

Procurei meus insetos, mas não consegui formar pensamentos complexos o suficientes para dar a eles qualquer comando que preste. Então só os chamei para mim. Eu ainda tinha que ajudar o Grue.

Meu compartimento de utilidades. Devagar, tanto para ser discreta quanto pela minha incapacidade de me mover rapidamente sem sentir uma dor horrível, levei minha mão às costas, me lembrando do que eu tinha lá.

Spray de pimenta – não. Queimaria a pele dela, mas os óculos e a máscara deixariam o rosto dela bem protegido. Ela estava arranhada e sangrando, então talvez eu pudesse passar em seu corpo… os ferimentos dela sofreriam, mas isso salvaria a gente?

Caneta e papel. Celular. Dinheiro trocado. Não, não e não.

Cacetete. Eu não tinha forças para usá-lo, ou o espaço necessário para abri-lo.

Injeções. Não iam servir, e eu não estava confiante na minha coordenação motora o suficiente para tentar isso.

Isso era o que tinha no meu compartimento de utilidades. Deixei minha mão cair e balançar por trás das costas ao me preparar para trazê-la de volta à frente, quando meus dedos encostaram em algo.

A faca embainhada na parte inferior das minhas costas. Eu a havia prendido no ponto mais baixo possível das minhas costas, para que ficasse fácil de alcançar e fosse também protegida pela minha armadura.

A faca servia.

Houve um leve clique quando Bakuda ajustou a tesoura-alicate e a removeu do nariz de Grue. A cápsula não estava mais lá.

“Isso vai ser show,” ela celebrou, se levantando antes de eu pensar em onde cortar ou atingir. Eu não queria matar, mas tinha que detê-la. Pelo Grue.

Minha mão ainda estava atrás das costas, segurando o cabo da faca com a lâmina apontando para a parte de baixo da minha mão. Mudei minha posição um pouco para que meu ângulo fosse melhor.

“Ô, barata tonta. Qual é a sua? Se torcendo feito um peixe fora d’água? Presta atenção, vai ser bem legal quando pedaços do rosto dele começarem a saltar pra fora daquele pedacinho de breu.”

Tentei pensar numa resposta, alguma coisa que fosse alfinetar combinando com o que eu ia fazer, mas uma onda de fraqueza passou sobre mim. Minha visão começou a escurecer, de novo. Estiquei minhas pernas numa tentativa de me causar mais dor, me forçando a ficar alerta, e não consegui fazer a escuridão passar. Será que era o Grue fazendo isso? Olhei para ele. Nada. Eu só estava desmaiando mesmo.

Eu não podia apagar agora.

Anéis nos dedos dos pés.

Sem uma resposta engraçadinha, nem uma piada, nem mesmo um grito de raiva, baixei a faca para as pontas do pé dela. Dois pensamentos me vieram à mente ao mesmo tempo.

Eu havia atingido algo duro. Será que o pé ou a bota dela tinham armadura?

E o pé era sequer o certo? Tattletale nunca tinha dito qual deles tinha os anéis. Ou se eram os dois.

Uma onda de escuridão passou pela minha visão e saiu rapidamente, me deixando meio desacordada, vagamente ouvindo os gritos. A náusea estava voltando, a minha consciência se esvaindo enquanto a vontade de vomitar aumentava. Eu ia vomitar, mas eu poderia me engasgar se eu fizesse isso usando a máscara. Se eu estivesse deitada de costas, eu poderia sufocar.

Grue estava falando alguma coisa. Não consegui entender as palavras. Soava urgente.

A mulher estava berrando no meu ouvido. Uma procissão de ameaças, palavrões, coisas horríveis que ela ia fazer comigo. A inconsciência me chamava, sedutora, segura, indolor, livre de perigos.

Se é que fosse mesmo só inconsciência. A ideia aterrorizante de que eu poderia estar morrendo me atingiu, me dando um breve momento de clareza. Foquei com força na salada de imagens e sons distorcidos, onde eu estava, quem estava falando e gritando comigo.

A mulher estava rolando no chão ao meu lado. Quando ela chutou uma perna, um pouco de sangue manchou a lente da minha máscara do meu olho que enxergava. Qual era mesmo o nome dela? Bakuda. A pontinha da minha faca ainda estava enterrada no asfalto onde o pé dela havia estado. Era aquilo a coisa dura: asfalto, não armadura. Tinha um monte de sangue. O dela. Um pedaço da bota, rosa e vermelho. Dois dedinhos com unhas pintadas, rosa e vermelho, no meio do caos sangrento.

Tentei puxar a faca e falhei, embora ela só estivesse meio centímetro para dentro do chão. O esforço me deixou ofegante, tentando respirar fundo para engolir ar. Cada respiração me fazia sentir como se eu tivesse inalado arame farpado e ferros quentes estivessem pressionados contra minhas costelas. Eu estava rezando para que a ânsia de vômito fosse embora, mesmo sabendo que não iria.

Grue. O que ele estava dizendo? Eu mal podia entender Bakuda com sua pronunciação robótica. Entender Grue era dez vezes mais difícil. Como se fosse outra língua.

‘Megá a chua vaca’? Faca? A faca. Ele precisava dela.

Me deixei cair de frente, com o rosto no chão, para que eu não me engasgasse. A mão que segurava a faca permaneceu onde estava, mas meu braço se dobrou num ângulo ruim, me dando uma pontada de dor. Meu pulso e cotovelo se remexiam bizarramente, tentando voltar a uma posição natural. Resisti à vontade de soltar, continuei segurando o cabo da faca.

O chão cedeu antes de mim, e a faca se soltou. Meu braço se estendeu, se esticando à minha frente, a faca segura em minha mão enluvada de preto. Olhei acima da faca para ver uma imagem embaçada de Grue tentando se soltar da fita dourada, a última coisa que vi antes de a escuridão e a inconsciência me tomarem.

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